A Paixão que tem que morrer – nova extensão (01/02/19)

[Prefácio]

Há várias formas de amar. Há o amor que ama sem se dar conta e que não espera e nem precisa esperar nenhum retorno do outro para que se ame, pois ama sem expectativa de retorno; decide amar. Há o amor puramente amável, natural em cada ser humano que tenha amor pela humanidade e, assim sendo, por si mesmo, quando prova desse amor amando a todos sem conhecer aquele que se ama. Mas o amor não termina aí.

Não tem esquemas, não precisa, pois não é ciência. Para eu poder amar experimentando toda a extensão e profundidade de intimidades e trocas que me é alcançável nele na sua proporção mais expressiva, e portanto, também mais íntima, é preciso desenvolver proximidade, nao só de corpos mas também de almas. É preciso haver relação, recíproca e progressiva.

Existem, então, várias formas de amor, com vários modos e expressões. Aqui trato do amor entre pessoas que se dispõem a viver o resto da vida juntas, que se amam de forma íntima e exclusiva a elas, onde um busca se dedicar ao outro que outrora fora desconhecido a ele enquanto há correspondência voltada a essa dedicação. Também diferencio, aqui, esse mesmo amor de paixão, examinada em sua radicalidade, e os fenômenos mais típicos de um apaixonado.

Do amor à paixão

Agostinho de Hipona já reconhecia que apenas Aquele que é amor pode compreender e amar plenamente, sendo Deus amor, porque o amor dos homens possui falhas, então o amor nos é possível sob manifestação e capacidade de amar e ser amado por um outro através desse vínculo de trocas, de uma relação. Todavia, não podemos encarnar o amor.

Todas as ilusões atribuídas ao amor como causa são, na verdade, de responsabilidades e causas puramente humanas.

Amor não cega. Amor desvenda. O que cega são as pessoas, com as suas próprias cegueiras de natureza e limitação. Cego sou eu, você, nós, por uma condição humana. E o que mais nos cega em relação ao amor é o nosso vício de idealizá-lo romanticamente.

O romance é o que mais falsifica o ato de amar, pois vende a ideia de que tudo será sempre bom, que tem que ser gostoso pra ser amor de verdade quando nos dedicamos a outro.

Se não isso, caímos no outro engano de achar que ele deve ser sofredor, um martírio interminável feito pelo outro onde apenas um se sacrifica. Daí se vê o quanto nós somos cegos.

Amor é, de todas as percepções, a mais esclarecedora; é a única, na verdade, com que realmente deveria ser compreendido o mundo.

Paixão, toda via, é originada de um surto. É sofredora por si só. Não tem nada a ver com o outro, com algo real e equivalentemente correspondido, é 'pathos'. É patológica, de onde surge a doença do sentir sem querer. Paixão, nesse caso, é a patologia da alma, porque o apaixonado se apaixona muitas das vezes sem ser correspondido e iminentemente por isso é afetado, pois não escolhe estar apaixonado, só é acometido pelo surto da paixão.

Paixão é potencialmente, e muito provavelmente, cabível de sofrimento vicioso. Essa é a imagem típica da paixão.

Paixão é loucura, já como diziam os gregos. É doentia. É sonhadora e improvável. É a apreciação anestésica e momentânea do gozo do sentir. É cheia de fé em si, mas só em si mesma e não vê os contrapontos da realidade, visto que também é uma suspensão total do estado racional de costume.

Paixão é um estado de suspensão de racionalidade. É o ego que não abre mão do sentir e que está sempre querendo mais, quando, na realidade, não possui nada.

Dito isso, não significa que a paixão seja algo abominável ou dispensável, pois não é. Mas também não é, nem de longe, o fator determinante.

O que digo é que, a paixão, como um sentimento cego de emoção contempladora do outro e pelas boas sensações que esse me proporciona, precisa morrer se quisermos ter algo além de uma mera reação química cerebral e do que levamos como “suvenires” de tal jornada.

A paixão possibilita apenas um caminho de relação duradoura baseada no amor contínuo e crescente, mas de forma alguma será ela determinante, o fundamento daquela relação. Sendo assim, a paixão não se sustentará quando não pensa, mas vive e morre de fantasias com o outro para si.

O desfecho só pode ser dois: ou a paixão morre e, morrendo, tudo mais também, uma vez que o que existia como peso afetivo era por conta da paixão; ou a morte da paixão cede lugar para o amor, independente e invulnerável a ausência do que seja apenas o “bom mútuo”, quando é prazeroso para ambas as partes, mas se baseia num “bem comum”, quando esse é identificado em equivalência, direção e sentido entre os dois e, por isso, viável à continuação do relacionamento ou se não, necessário o seu fim, mas igualmente para bem.

O amor, nesse caso, não pode vir apenas de um. Para ser amor é preciso que haja a intenção de amar também no outro. Do contrário, a intenção como ímpar de amar não passa de amor platônico, mas nunca será amor de verdade porque não há nele a relação de mutualidade e correspondência de sentimentos e ideal em comum; de perspectiva de um nos dois. Não há reciprocidade e, portanto, não pode ser amor.

É condição 'sine qua non' do amor, nesse caso, a troca da expressão de amar, essência da relação.

E porquanto o amor flua estabelecendo raízes, pouco importa que a paixão retorne e que morra outras vezes porque ela já perdeu o impacto que poderia ocasionar; não possuí o foco do relacionamento que fora estabelecido em algo maior que ela.

Quando isso acontece pouco importa qual veio primeiro; se fora o amor ou a paixão, pois havendo um início para amar, esse não terminará jamais.

Pode acontecer por um acaso que aquela relação termine – tenha um fim – e se veja, dentre os seus motivos, inviável de continuar com aquela mesma intimidade, frequência e intensidade de dedicação em amor que se tinha ou pretendia ter já que isso implicaria ter, por si só, ter a relação já não mais possível naquele dia, ou entre aqueles que se relacionam.

Nisso, o amor pode mudar a sua forma de expressão, o modo que ama e o nível que se sente/sabe amado, e não só pode como o faz quando é amor de verdade, mas é impossível “desamar” aquele que uma vez foi tenazmente amado. Dito isso, não há amor amargurado porque tudo nele está resolvido.

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Este é o amor que se descobriu ter em uma misteriosa radicalidade com o outro e, o outro, igualmente para com aquele que amou nessa profundidade que foi desenvolvida e então fecundado como amor no outro, amor entre eles, e não pode nem deve ser arrancado. É um tipo de amor extremamente singular e raro de se acontecer onde ele nasce, antes ou durante a relação, e continua intacto mesmo fora dela.

Um amor pós-relação e que, em amando o outro (não o seu próprio desejo de amar, a sua projeção) aprendeu a amar de outros jeitos, outras formas sem deixar de ser aquele amor livre das formatações daquele relacionamento que já se fora.

Não diferente do que se teve durante a relação amorosa, esse amor que transcende tal relacionamento e o faz virar detalhe frente ao que permanece, deve ser também recíproco para ser possível para não ser frustrante a nível da amizade. E com recíproco digo mesmo do ato de amar, não do vício de querer sempre por perto, contactar todo instante, não largar. Digo, por si só e só por si, da consideração a pessoa que se conheceu, as suas necessidades, carências e, com isso, a estimá-la mais que a um estranho qualquer, apenas um passageiro, quando se pode ser mais que isso.

E ninguém precisa ficar exclamando “eu te amo, eu te amo, eu te amo” ou se dirigindo assim com quem se ama grandemente, visto que o termo “amor” como nome de tratamento carrega muito mais um peso cultural do que um significado sabidamente pessoal entre aqueles que se saibam, até no silêncio, intimamente amados um pelo outro. Aí não é preciso de uma “confissão de amor” cansativa e romantizada, mas pouco ou nunca expressada em ação, em amor de verdade... mas só repete que ama, quando a melhor de todas as declarações e também a única verdadeira é aquela confessada em mim; através da minha atitude e da minha presença frente a necessidade do outro, sempre que possível.

Nenhuma forma de amor propõe o impossível. O impossível é proposto pelas aspirações do encontro apaixonado que atrela, ao seu desejo, o sentido ainda raso de pura e simplesmente amar. Amor verdadeiro, que eu tenho antes em mim, conhece apenas os possíveis até então inimagináveis das relações humanas e, para mais perto, das considerações amistosas e afetivas com o outro.

Na realidade – valendo para toda e qualquer forma de relacionalidade – o amor não propõe coisa alguma; sim promove. E o único meio que ele sabe promover é através de si mesmo, amando, e tudo o que ele tem a promover é amor; é bem querer.

E eu sei quando meu amor foi verdadeiro, também, não por causa do outro mas por causa de mim. Ele será tão verdadeiro quanto eu mesmo for verdadeiro comigo mesmo e, sendo assim, com o outro, não me falsificando para alcançar nada; mas primeira e essencialmente, verdadeiro comigo mesmo, de onde parte o ato de amar. Se não for assim, não haverá ninguém neste mundo que faça isso por mim ou instigue tal coisa em mim.

Então, é amando que eu promovo o amor que possuo — primeiramente — em mim em relação aos outros e — em segundo lugar, num nível de correspondência relacional — faço valer a consciência do meu amor, declarado ou não como tal, àquele que amo em devida correspondência.

A única declaração de amor válida é aquela que eu declaro com as minhas ações, encarnado em mim; quando preservo e opero para o bem do outro até quando o deixo ir, estou amando.

Por isso dizer em palavras, enquanto elas não se transformam em atitudes, não é amor que se diz ter em uma relação propriamente amorosa.

Em parte, realmente se ama, pois não seria possível uma convivência ou mesmo tal amizade arraigada sem que se amasse o outro numa dimensão mais elevada do que outros amigos possuem ou tiveram. Mas esse amor amado não corresponde aquele que se pensa ou se diz amar; não adquiriu, ainda, essa propriedade de amor na relação ou em uma das partes.

Assim, a maior carga da declaração do “eu te amo” feita pela maioria dos casais possui muito mais um desejo e uma fascinação inata, natural da alma deles,  e do que se admira no outro do que, de fato, uma devoção em amor que predomina e estratifica aquela caminhada mútua, juntos.

Por isso é preciso sermos honestos com nos mesmos, e também com o outro que se diz amar, examinarmos o que há em nosso coração como desejo, objetivo e prioridades (em relação a nós mesmos e ao outro) e, de acordo com o tempo, o tempo decorrido daquele relação e o nosso próprio tempo, sabermos com que nível de amor estamos lidando.

Quando há muito mais paixão do que amor, ama-se muito mais a relação do que o amado e quando esta termina podemos ver o que sobrou, o que se desenvolveu em nós pelo outro e nisso dizer, além da relação, se o amamos ou se apenas o desejamos muitíssimo.

Assim se diz “eu te amo” e se faz loucuras muito mais pelo impulso e energia da paixão do que pela consciência do amor. Essa consciência, por sua vez, existe é na pessoa que a tem e só por ela, não por causa do outro. Isso não se ensina, não se formula. Só é passível de conhecimento através da experiência própria, pessoal, quando se ama nessa singularidade indecodificável e específica do sentido de amar mais consciente.

– feveiro de 2019

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Existem casos em que a paixão se manifesta antes de haver o amor e esse último, em seu ônus, vem depois, enquanto a paixão, por sua vez, com o tempo vai perdendo a ênfase, e o amor vai criando raízes. E existe toda uma constelação de casos, que são esses a maioria, onde a paixão chega e as pessoas se casam por paixão. Não por causa do amor, mas por causa da paixão.

Os que se dão em casamento por ela nunca se casaram em si mesmos, em suas interioridades que se encontram, se reverenciam, se admiram e com isso se casam. Resta, então, o casamento como cerimônia, como formalização civil... Como mais um ritual do relacionar-se, e só.

Ou seja, conseguem fazer tudo, menos o casamento de si mesmos. Menos se casarem – a única coisa que importa num casamento.

Por que, então, as pessoas se casam tanto sem nunca terem se juntado primeiro, o que dá razão ao casamento? Porque nada, nada, é mais casamenteiro do que a paixão.

Ora, a paixão tem pressa! A paixão tem sede, ao mesmo tempo que quer ser tomada. Quer consumir e quer ser consumida. A paixão quer viver, a paixão quer morrer, a paixão quer existir e quer ser extinguida.

A paixão é, na sua radicalidade, a expressão ambivalente da bipolaridade emocional de todo ser humano. É o estado bruto de afetividade cheia de vontade de sobreviver na mesma medida em que se alimenta de pulsões suicidas.

O amor, por outro lado, é paciente. Não vive em função dos seus interesses e da utilidade que o outro possa proporcionar, mesmo que este seja o seu cônjuge, e ama por isso mesmo. Ele é justo e não se jacta por coisa alguma, antes se regozija com a verdade que é feita e admitida em favor do bem de todos e de quem se ama.

O amor não tem inveja, não sabe invejar. Se sabe como amor quando se alegra na alegria do outro, mesmo que este não esteja mais acompanhado daquele que ama. Não se ira em vão nem tem ciúmes, mas confia e nunca perecerá.

Amar não é para romancistas, mas uma condição para todos que também desejam serem amados sem serem, com isso, sequestrados e nem, por isso, esquecidos. É para os que amam, permanentes amadores do amar.

Do que vale o amor

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.

E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.

E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.

O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.

Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;

Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.

O amor nunca falha; mas, havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;

Porque, em parte, conhecemos e, em parte, profetizamos.

Mas, quando vier o que é perfeito, então, o que o é em parte será aniquilado.

Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.

Porque, agora, vemos por espelho em enigma, mas haverá um tempo em que veremos face a face; agora, conheço em parte, mas, então, conhecerei como também sou conhecido.

Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três. Mas o maior destes é o amor.”

(I Coríntios 13:1‭-‬13)


Nitidamente, não somos capazes de reter e expressar plenamente algo como o amor, por isso não somos amor; amamos. O amor é mais que um romance. É mais do que uma palavra que dizemos apenas para aqueles a quem temos afeto.

Amar varia na sua profundidade para com quem se ama e não se restringe a uma única expressão, antes é o que possibilita a vida no sentido mais completo do seu significado, de forma que se eu não houver amor; em mim, no meu olhar, no tratado para todas as coisas, pra me dedicar a o que quer que seja, então, o que seria de mim?

Mas no dia em que cada um se der conta que amor não é nenhum romantismo, não é uma crise de idade e nem um clichesismo artístico e sem razão do plano da existência, aí as exacerbações de ideias e a banalização da vida encontrará o seu fim.

Nele não há ilusões. Nele tudo é dotado de sentido, portanto, amamos, estando nós Nele e Ele em nós, por amor – o que não se restringe a expressões de relacionamentos, mas é em vida.

Gabriel Rocha
23.10.17 - 01.02.19

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