Ensaio sobre a Revolta Política: O olhar ameno sobre o mar revolto
É interessante observar que, na história, toda vez que se tem uma fase de grande repreensão e regime tirânico sendo feito por muito tempo, por mais demorado que seja, tenha certeza, o fim é o mesmo e o mais natural: tem-se o efeito contrário do que aquele regime pretendia alcançar com a sua repreensão. Para a censura coercitiva, há uma epidemia de produção artística e de ideais como grito instintual da mentalidade coletiva que vinha sendo estancada, reprimida.
O estouro desse grito libertário que se vê assim, tão livre das antigas mordaças que o afligia, faz brotar daí um segundo fenômeno psicológico curioso; quando a população, saturada de todo aquele enclausuramento de produção artística, intelectual e manifestação cultural, tende a ir ao outro extremo: eis o efeito pêndulo. Se tem aí, entre os produtos gerados pelos déspotas do pensamento coletivo, uma explosão de genialidade e junto a ele ainda, um viés que adota toda atitude e pensamento (ideologia) que possa se mostrar como a antítese do pensamento opressor atual, optado não por ser a via necessária para aquele momento e situação, na maioria das vezes, mas só por aparentar ter em si todas as medidas, mesmo em intensidades exageradas, para se opor àquele outro regime igualmente exagerado, porém numa outra direção.
Evidencia-se então o que conhecemos como revolta; uma reação que não costuma ser proporcional a situação, nem necessariamente é a única alternativa ou a melhor delas, mas reuni em si todas as características que possam aparentar que tal opção se distancia do regime problemático em vigor, seja ele tirânico, corrupto ou totalitário, todavia, problemático; e portanto se torna a opção que brilha para guiar as almas perdidas no purgatório daquela confusão social; e portanto fascina e atrai multidões que se ajuntam como vespas desesperadas em torno de uma lamparina; e portanto será essa a opção eleita pela massa que segue qualquer feixe reluzente num apagão.
O desfecho de tomadas de decisões como essa, onde a massa vulnerável e afetada em suas emoções ocupa também o lugar de juiz do seu próprio destino, é, na maioria das vezes, (1) lastimável nas consequências que delas são geradas, (2) historicamente previsíveis – pois são também muito repetitivas – e (3) têm os seus efeitos dispersos em anos de caminhada para que as próximas gerações colham e saibam, talvez, deixar de fazer tudo aquilo que seus pais fizeram enquanto bradavam orgulhosamente as suas escolhas e nisso iam, sem se darem conta, forjando condenações contra seus filhos.
Logo mais o ciclo torna a se repetir. O cenário social uma hora ou outra enfrenta, mais uma vez, um período de diluição das suas estruturas, seus acordos e suas morais, e se vê assim em ameaça de extinção como sociedade. A ameaça, por sua vez, faz com que os cidadãos temam e o temor os leva a considerar praticamente qualquer alternativa que lhes aparente uma estável continuidade e, mais que isso, se vejam coagidos a fazerem de tal forma como se fosse a única alternativa cabível. O atual regime problemático só serve para constatar ainda mais a urgência de uma mudança abrupta e radicalmente oposta a forma do regime vigente enquanto a sociedade (tão problemática quanto o sistema que a supervisiona, pois ela o elegeu e o constitui em certa medida) sendo composta por quantidades e quantidades infinitas de pessoas que não conhecem o repertório histórico e nem sequer percebem, por elas próprias, essa dinâmica escrachada e horrorosa que só volta a acontecer por não termos guardado a lição das dez primeiras experiências, vivem com a sensação de que tal coisa nunca antes houvera acontecido.
Nenhuma sociedade, no entanto, existe ou existiu sem ter como condição dela mesma essa característica de picos e crises, e não por causa de nenhuma briga de classes necessária e unicamente; mas muito mais primordial que isso, que é a sua complexa estrutura orgânica. Com isso, quero dizer que não é de se admirar que uma vez havendo um amontoado de pessoas que se comprometam a viverem juntas, dividindo o mesmo pedaço de terra e a dedicarem o seu trabalho a um todo, haverá, recorrentemente, a quebra do consenso que foi estabelecido e isto ainda naquela mesma época, naquela mesma geração. Quanto mais recorrente, então, será essa quebra daqui a mais alguns anos, após duas ou três gerações?
É claro que, quanto mais tempo aquela sociedade existir, mais crises da própria ordem experimentará; não por ela ser de toda má na deliberação dos homens que a compõem, mas pelo tempo que age tanto em favor do desenvolvimento social, abrigando as multidões que crescem cada vez mais e possibilitando formulações de suas morais, quanto em desfavor, operando como a pior das corrosões, pois; se os homens não nascerem um dia logo após a ressurreição de Cristo para verem a cruz ainda manchada com seu sangue e ouvirem o testemunho daqueles que eram mais próximos dele, ou ainda, se não tiverem sido contemporâneos a ele nos dias que antecederam a crucificação para poderem tocá-lo e vê-lo, este já será motivo suficiente para que desconfiem de sua volta e resistam aos seus ensinamentos, de modo que se a ausência do corpo físico já os faz duvidar, como crerão na sua palavra? Assim como é a suspeição para que o homem siga a fé tendo o tempo decorrido como incitador de sua descrença, é também para que o coletivo dele se comporte como o coletivo que concebeu as normas que existem até hoje em uma sociedade.
Quanto mais cronologicamente distante uma sociedade estiver do que seja o seu ponto de conciliação ou da última grande reforma política, mais perto ela estará da próxima grande conciliação de reformulações sociais e/ou reforma política, mergulhando antes, porém, na caotização das suas normas e de seus preceitos, motivos estes que tornaram tais reformulações necessárias e sem os quais, não seriam.
Assim como diz o Eclesiastes que denuncia a vaidade dos feitos terrestre, a miserabilidade humana, perdida e fadada em seus feitos históricos que tornam a se repetir com outras caras, outros personagens, outras formas e configuração mas não escapam em nada do cerne da presunção daquela época:
“Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se o sol, e volta ao seu lugar, de onde nasceu. O vento vai para o sul e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento e volta fazendo os seus circuitos. Todos os ribeiros vão para o mar, e, contudo, o mar não se enche; para o lugar para onde os ribeiros vão, para aí tornam eles a ir. Todas essas coisas se cansam tanto, que ninguém o pode declarar; os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos de ouvir. O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; de modo que nada há novo debaixo do sol. Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós. Já não há lembrança das coisas que precederam; e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, nos que hão de vir depois.”
(Eclesiastes, cap. I, vers. 4-11)
Ora, o que vemos hoje, cá no nosso caso nacional caótico e também para além dele, se não o cumprimento de mais uma das observações mais simples, contudo mais profundas, do Eclesiastes? Neste sentido, é essa dinâmica histórica a qual parece não escapar o ser humano. Quanto mais ele vive a sua história, mais torna a repeti-la. E aquele que a conhece; o que poderá fazer para mudá-la senão advertir os presunçosos com a sua palavra, se é precisamente entre eles que predomina a agitada convicção da certeza e falta o ouvido para ouvir um aviso?
Além do atual momento, tivemos personagens na história contemporânea do Brasil para por em prova o que aqui escrevo — de modo que o que eu digo, não digo por mero dizer, senão apenas porque, antes, vi expresso em todo canto, em cada aresta da história política mais próxima, e só então digo, tal como fez Salomão ao perceber o mundo com seus olhos e registrar com suas palavras em texto quando ele mesmo diz: “Atentei para todas as obras que se fazem debaixo do sol, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito.”
(Eclesiastes 1, vers. 14)
Nossos personagens, para quem recorda, são mais ricos em sua dramaturgia, são mais empenhados na sua encenação e, no entanto, são logo esquecidos após seu curto momento de fama onde, junto com ele, se vai a nossa memória que sofre de uma amnésia crônica quando o assunto é poder. Nesse nosso enredo, já vieram e se foram lúdicos personagens e, dentre eles, um chamado Caçador de Marajás — tão bom em sua atuação para o público que o escolhera e no compromisso que dizia ter para com ele que fez-se necessário um outro, este não para caçar, mas nos salvar da temporada de caça truculenta; o Salvador dos Pobres.
Agora todos se comportam como se a história não narrasse a mesma moral com rimas diferentes, pois temos dessa vez, não um caçador ou um salvador qualquer, mas "o" salvador, chamado Mito, o Messias. Essa outra presunção também ficará registrada na história; apagada, todavia, como registro factual, podendo ser de todas as formas interpretado e adulterado para fazer o interesse de algum grupo no tempo posterior, mas claro e coerente para o olhar de quem não tem interesse algum em turvar o nosso passado, seja para negá-lo ou seja para falsificá-lo em razão do interesse de hoje. Pois quem camufla os erros do passado convoca-os à repetição, seja na dimensão histórica-política num plano coletivo tanto quanto na dimensão pessoal, da sua própria vida; e quem não repara no presente sentencia o próprio futuro, quer por desinteresse com os assuntos da nação, quer por descuido de reparar o seu próprio caminhar e com quem se caminha e escolhe caminhar.
Todavia, se apenas alguns entre muitos ou um dentre cem buscar reparar; e reparando, enxergar; quão fatigante será a prova dessa benção. Estes então, em meio às revoltas que possuem a multidão que segue sendo jogada de um lado para o outro e contra si mesma como um mar de ressacas que nunca encontra o tempo do céu limpo, serão um dos poucos olhares despertos, mais aguados do que esse oceano turbulento que os angustia, mas sãos e por isso angustiados, e angustiadamente sãos.
Como escreveu Queiroz:
“Não há nada novo sob o Sol, e a eterna repetição das coisas é a eterna repetição dos males. Quanto mais se sabe mais se pena [sofre].”
(A Cidade e as Serras, cap. VII)
Gabriel Rocha
08.01.19
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Imagem: estátua de "Marianne", figura simbólica da República da França, vandalizada durante os protestos dos gilets jaunes, em novembro de 2018.
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