O Antídoto É A Arte - (Interpretação do aforismo 822 de Nietzsche)
“Temos a arte para não sucumbirmos à verdade”
I. Uma interpretação exige uma contextualização
Há uma divisão de suma importância dentro do pensamento nietzschiano e que dialoga desde o princípio até suas obras posteriores com a filosofia niilista por englobar o seu fundamento. Essa divisão, no entanto, não pretende formar uma espécie de dualismo paralelo para se conceber o mundo dentro de uma visão maniqueísta nem se presta a ser um parâmetro categórico de pessoas, onde se poderia enquadrar facilmente a orientação das vontades de determinado indivíduo em um de dois termos e de modo permanente. Ao contrário disso, o que Nietzsche (Reino da Prússia, 15 de outubro de 1844 - Império Alemão, 25 de agosto de 1900) nos propõe são conceitos formados a partir da constatação de duas possibilidades básicas de responder a vida, a realidade experimentada por um agente de vontade em potencial. Nessa formulação, todo ser vivo é um portador de vontade. De uma mera ameba totalmente alheia de sua própria existência, que pode ser observada através de uma placa de Petri devorando outro microrganismo, ao homem como forma mais complexa de vida conhecida (e reconhecida de si mesmo) e que, não obstante, porta esse mesmo potencial em comum com a forma mais rudimentar de vida.
É com esse pressuposto que tanto o homem de grande porte intelectual experimentado na alta filosofia como a espécie mais primitiva dos seres vivos compartilham, enquanto tal, uma mesma propriedade que caracteriza tudo aquilo que possui traço de vitalidade, o que Nietzsche chama de “vontade”. A diferença — ou ainda, a especialização das vontades só passa a ser demarcada quando o filósofo se presta a analisar o destino com o qual a cultura humana passou a direcionar essa carga vital. Através de suas investigações filológicas e antropológicas, Nietzsche percebe que as ações do homem contemporâneo são baseadas em crenças metafísicas acerca da verdade do mundo e, com efeito, em pressupostos de encaminhamento para uma dada maneira correta, boa e aceitável de ser em detrimento de todas as demais possibilidades de conceber as coisas.
Esse modo de proceder com a vida, a qual Nietzsche se referirá mais tarde como uma decadência cultural, é calcada no fundamento de uma verdade. O que ocorre é que uma vez assumida tal verdade, tudo que não passa a refleti-la é considerado mentira — pura e peremptoriamente. Assim, a verdade possui o mundo e o mundo possui a vida, sem chance para que haja uma pluralidade de mundos, visto só haver uma possibilidade única e perpétua, a verdade. Consequentemente também não pode haver espaço para percepções ou vontades individuais, uma vez que toda a existência, desde o seu vislumbre, foi vitimada pela verdade para purificar o mundo das não-verdades: da mentira e do maligno. Foi necessário então matar o mundo todo (negar a vida), este presente orgânico instante, com a verdade, a frigida desnaturada e distante, para se ter uma única representação insignificante originada dele e que, no entanto, tanto o despreza. Portanto “o mundo jaz na verdade” e com ele, todos nós; nossas potências e subjetividades.
Se o mundo, porém, tivesse mesmo uma configuração única como querem e pregam os santos verdadeiros, tudo mais que existe deveria tão somente ser em correspondência a tal configuração, de modo a exalar essa verdade pelos poros, onde o que quer que ocorresse de diferente a essa forma una e perfeita só poderia ser considerado uma manifestação deficiente do mundo. Uma anomalia que, por tão própria de si, carece de cura para ser redimida aos braços benevolentes da verdade — a realidade não como ela se faz, mas como discurso.
Ao fazer tal consideração em que os juízos de valores são tomados não mais como uma particularidade natural, mas como o mais verídico e profundo fato universal, o homem entra em contradição com a natureza da vontade, que não possui valores além do próprio querer. Ora, o que caracteriza a vontade é justamente o seu poder, que se origina e finaliza em si mesma, visando cada vez mais se tornar ainda mais forte, mais potente, seja na experiência da ruína ou da ascendência mas invariavelmente forte; sem aspirar nada que não seja o seu constante e distinto desejar, potência de realização. A princípio, é na execução de sua própria vontade que ela se justifica. Logo afirmar a existência de uma verdade para guiar os anseios de tal força é, na verdade, uma tentativa de domesticar tal vontade e o ser que a possui, quando esse é por definição a forma mais integral e radical de suas vontades.
O discurso de verdade portanto não se trata de uma constatação factual da realidade adquirida pela cognição, visto ser esse discurso via de regra demasiado generalista, peremptório, idealista e em muitos casos transcendentalista em seu seio; mas, ao contrário, uma criação humana com pretensão de fundamento existencial, que atua puramente como um meio de justificar uma forma única de ser (querer, sentir, mover) e, consequentemente, de aprisionar a vontade, que por natureza é tão variável e inconstante, em uma norma insustentável na realidade humana.
Nesse sentido, o que os apologistas do realismo enquanto “verdade" mais gostariam é que toda forma de vontade cedesse para os seus teoremas divorciados da vida e da realidade para que assim ela pudesse ser passível de uma visualização mais compreensível — e com efeito, previsível — ao saber. Para que assim, mais ainda, ela pudesse ser domada, se não totalmente pelo menos ao nível inteligível, no desesperado afã humano de tudo saber e tudo dominar; como se fosse esse o seu dever acima de qualquer circunstância. Em resumo, que fosse a ciência o comando hierárquico sobre a vontade. O grande desejo do “homem da verdade” é, no íntimo de suas teses, que a vontade deixasse de ser vontade; por isso a trata como se ela não fosse!
Ao invés de assumir o imprevisível, o imponderável e o transitório presente na potência e na configuração de seus atos tal qual na realidade que nega, preferem elaborar, o mais rápido possível, uma tese que explique não só toda a dimensão variada do universo, em sua origem, constituição e finalidade — coisa essa que nunca lhes foi prometida —, mas também eles à si mesmos, lhes oferecendo dessa forma uma aparente sensação de controle sobre a natureza, a se saber sua e das demais coisas, assim como forjaram a crença da verdade e a verdade da crença para afirmarem-se mútua e constantemente que não estão tão desorientados como previamente experimentaram e já compreenderam estar. Do contrário jamais haveria a produção da crença, a necessidade de algo já determinado e garantido para suprir a insegurança que lhes acomete frente ao absurdo e desconhecido, inerentes à existência.
Nietzsche observa que toda a construção da verdade como um componente inequívoco metafísico e universal é uma reação a constatação de uma realidade que é, por natureza, incerta. A verdade, portanto, não se trata de um fato como pretende ser mas de uma construção apenas: um desejo interior do homem, que passa a ser ecoado através da quantidade de outros homens e de eras, que passa então a ser idealizado e encapsulado nesta matéria que lhe sussurra promessas como vida eterna, propósito e um mundo sem dor ou desgaste por não ter encontrado tais coisas neste presente. É, segundo Nietzsche, uma carência que nasce no coração do homem em sua posição de clara impotência ‑ esse desespero de se ver só e encarregado de si mesmo, sua condição dramática marcada por uma finitude injusta que não compensa o tamanho de toda sua vulnerabilidade ‑, e não uma verdade determinante, a qual jamais existiu senão como profundo desejo do homem.
A partir de cosmovisões fundamentadas na elaboração de uma verdade, Nietzsche argumenta ter surgido não só as crenças, sobretudo aquelas de viés repressor, mas também boa parcela das filosofias que se valiam da busca da verdade para formar uma norma de conduta que melhor se aproximasse da “natureza” verdadeira do homem, o que fez o autor de Além do Bem e do Mal se pronunciar a respeito em uma de suas críticas ao imperativo estóico:
É de acordo com a “natureza” que querem viver! Ó nobres estoicos, que velharia a de vocês! Imaginem uma organização, como a natureza, pródiga sem medida, indiferente sem medida, sem intenções e sem consideração, sem piedade e sem justiça, a um tempo fecunda e estéril e incerta, imaginem a própria indiferença convertida em poder – como poderiam viver em conformidade com essa indiferença? Viver não é precisamente a aspiração a ser diferente da natureza? A vida não consiste precisamente em querer avaliar, preferir, ser injusto, limitado, conformado de outro modo?
(...) Admitindo que o imperativo “viver de acordo com a natureza” significasse no fundo a mesma coisa que “viver de acordo com a vida” – como não poderiam fazê-lo? Por que fazer um princípio daquilo que vocês mesmos são daquilo que devem ser? (NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, p. 21, § 9)
Não é coincidência que toda a alegação da existência de uma verdade tenha como consequência uma interferência direta na vida dos homens, sempre orientando a forma como ele se relaciona inter e intrapessoalmente, suas preferências, imperativos e, acima de tudo, os seus valores, onde uma vez declarada a santíssima verdade precisam ser formatados para apenas repetirem os dela. Isso porque a grande função por detrás de toda aposta de verdade é ornamentar o sujeito: lhe dizer, através de normas, o que deve e não fazer, como deve e não agir, o que deve privilegiar mesmo que a contragosto, e quais de seus desejos não deve atender, até que o sujeitado fique de tal forma tão condicionado a essa normatização que passe a ter a convicção de que realmente necessita dela e a deseje mais do que o próprio desejo, agora já cauterizado. Vemos aqui uma espécie de assassinato [anulação] do sujeito, de sua potência e do seu desejo, e é a esse resultado o qual a promoção das verdades metafísicas pretendem alcançar.
“Se quisermos saber como se formaram as afirmações metafísicas mais transcendentes de um filósofo – faríamos bem, e isso seria até mesmo inteligente, perguntar-nos a que moral quis chegar com isso.” (Idem, p. 19, § 6)
A finalidade implícita na alegação desses princípios que carregam sempre em seu núcleo a aspiração de uma verdade, sejam eles ornamentados de um caráter filosófico ou religioso, é para Nietzsche, como já exposto, a implantação de um preceito moral, o que também sugere um interesse ou aspiração específica como autora de tal verdade, como pode ser o caso mencionado há pouco com os estóicos em sua aspiração de harmônia; bem como pode ser o caso de povos duramente oprimidos que entenderam, como resposta para seu sofrimento, a crença de um por vir em que os oprimidos e fracos serão os senhores enquanto os grandes e ricos terão menos valor de importância, o que os compensa através de seu credo; ou o caso de governos que reforçam sua autoridade por meio da subordinação em bando, assegurando sua permanência com a promoção de um regimento moral alçado e legitimado para o povo por uma dada verdade que mantenha o estado atual da ordem civilizatória em estabilidade, como a religião cristã, em outra menção de Nietzsche.
Há quem possa argumentar, claro, que o ato filosófico de buscar esquematizar o fundamento da existência, suas leis e a especulação sobre o objeto da verdade, ainda que como suposição, seja também um ato de vontade tão legítimo como àquele que se manifesta na concreção das ações já que em essência se constitui também de um movimento: o da concepção. Assim, nesse caso, teria a vitalidade adquirido apenas uma forma mais intelectual, não podendo ser portanto censurada por conta disso quando todo movimento criativo nos sugere uma vontade de potência. E, realmente, não estariam eles errados em achar dessa maneira. No fundo, toda questão filosófica que busca regimentar o cenário do caos percebido é, também, uma vontade. Tanto que o próprio Nietzsche faz questão de observar esse caso mais adiante, porém com uma ressalva: de que, por ser essa a vontade de potência primal, deseja recriar todo o mundo existente segundo apenas o seu individual, enquanto consequentemente se faz por negar de modo ostensivo toda e qualquer variação.
Mas isso é uma velha história, sempre a mesma: o que aconteceu outrora com os estoicos ocorre ainda hoje, desde que um filósofo começa a acreditar em si mesmo. Ele cria sempre o mundo à sua imagem, não pode fazer de outra forma, pois a filosofia é esse instinto tirânico, essa vontade de potência, a mais intelectual de todas, a vontade de “criar o mundo”, a vontade da causa prima. (Idem, p. 22, § 9)
Dito isso, há uma diferenciação notável entre as vontades até aqui manifestadas através do gênero humano. Há uma que atua de forma puramente criativa em uma instância, sem pretender chegar com isso a uma solução de mundo, ou a revisão dele, e há outra que atua de maneira a encontrar, com a sua concepção, uma adaptação irreal de mundo calcado no idealismo ao invés do seu aproveitamento possível e orgânico. A esse último, sabemos, haverá a reivindicação das aspirações particulares de seus autores como verdade.
Quando portanto o teor exprimido pelo ato da vontade revela a intenção de uma verdade, ela é então uma vontade de verdade. A “vontade de verdade” opõe-se a “vontade de poder” (Wille zur Macht) proposta por Nietzsche. A natureza da vontade de verdade se caracteriza pela recusa de admitir o drama existencial e então fabrica o seu consolo na metafísica e, em um segundo momento, nega e busca suprimir as manifestações de vitalidades diversas a sua – o que também significa dizer identidades diversas, saberes diversos, sensibilidades diversas; a própria definição de subjetividade, enfim – e almeja a extinção de toda diversidade vital, só percebida como um erro, uma imperfeição do mundo, para a instauração de uma monotonia adoecida em si mesma, exaltada como saúde e perfeição.
A vontade de poder, de outro modo, abraça tal constatação do drama condicional humano, não com lamúrias nem com a expectativa de alguma tese intelectual, divindade redentora ou qualquer que seja o artifício metafísico que de certa forma conserte ou concilie a realidade para ele (o principal artifício recorrido aos que esperam uma “correção” da realidade), mas com uma oportunidade exclusiva de experimentação da vida, de emancipação e realização de todo seu ser em ato, tal como um sorriso que anuncia um grande “sim!” ao que é experienciado. Esse “sim” é a mais alegre e grata aceitação da vida como bem lhe é apresentada em que, ao enxergá-la, o homem de espírito forte e independente percebe também a total incongruência das supostas verdades que lhe são impostas sistematicamente e a falácia de seus esquemas que até aqui não pretenderam nada além de apequená-lo e dominá-lo.
Nietzsche postula que os grandes avanços da humanidade foram realizados graças ao poder do homem de espírito livre, que não poderia fazer outra coisa senão ser inventivo, atuante por conta própria, para deliberar, criar, qualificar e assim, com efeito, ascender a cultura de sua raça. Em contraposição, o espírito prostrado e ferido do homem fraco, se vendo impotente demais para competir com os gênios que se satisfaziam com suas obras, suas próprias vidas, seus próprios corpos, adotaram então uma postura de vitimados e sistematicamente contrários ao que fosse criação do homem livre. Por esse motivo há um traço eterno de ressentimento no homem que insistentemente manifesta raiva ao diferente, hegemonia pela homogeneidade, anseio pela verdade (todos termos que habitam e se traduzem em vontade de verdade). Ou seja, esse é o tipo de vontade que se manifesta de forma mais frequente na espécie mais fraca dos homens na medida em que também se torna aquilo que os caracteriza, fracos, auto condenados a existirem somente em função de coibir a sua força antagônica, o mais forte; nunca por conta própria, pois ele não tem força vital autônoma para tal feito. A vontade de verdade portanto é essencialmente reativa, quando depende da vontade ativa para poder se manifestar em sua zanga característica. Era especificamente sobre essa categoria de vontade que Nit. formou boa parte de sua filosofia. Se temos aqui a tendência tradicional impeditiva, encontramos no homem superior a vontade de potência agindo contra todo o vício de verdade que visava lhe aprisionar.
A primeira vontade mencionada é aquela cultivada há séculos graças a essa mania de vontade de verdade do homem, que o fez inventar filosofias e instituições mil para atendê-la. É a valorização espiritual que com efeito traz o demérito à tudo aquilo que é concreto, físico e tangível, à todo o isto e agora. Ou seja, a vontade de verdade insiste em um plano metafísico, na idealização de um amanhã imaterializado e ignora o hoje. É o movimento ressentido, culpado por não ser inércia, e que tenta, a todo custo, coibir as ações de realização e prazer do homem; ao passo em que a vontade de potência não quer saber de nada além (de si), tomando a vida em sua completude com satisfação já que não nutre esse humor zangado pelo mundo ‑ ou, como diria o cara do martelo, “espírito de vingança” (Geist der Rache).
Já a vontade de potência é a confissão desinibida de todo querer e todo mover, todo ser e todo criar a partir de si. Com ela o homem se vê, finalmente, não mais como vítima da existência onde permanece em uma posição passível diante da realidade mas sim como autor dela. Ao assumir a ausência de um princípio fundador e, com isso, também a de um sentido já dado, ele assume a dádiva de dar o seu próprio. É na afirmação do dessentido total do mundo que o homem pode então passar a dotá-lo de sentidos novos e particulares pelo ato da criação. E é no aprofundamento desta questão que chegamos até a sentença sugerida pela frase:
“Nós temos a arte para não sucumbirmos junto à verdade.” ou “A arte existe para que a verdade não nos destrua.”
(NIETZSCHE. “Vontade de Poder”, aforismo 822)
II. Ponderações
Percebemos como uma pequena sentença é capaz de conter em si um significado tão amplo e crítico. Arte aqui não tem a ver com uma mera produção ou performance artística, isso é, o sentido convencional do que se habituou chamar de “arte”. Aqui ela é vista como uma instância radical ocupando lugar central para a atuação na existência, é mesmo um modo de conceber a vida. Enquanto a vida concebida como pressuposto de uma verdade rouba o homem de seu “eu” na medida em que o impede de desenvolver-se ao querer adulterá-lo de suas aspirações originais por considerar que seriam elas imperfeitas e pecadoras, a vontade de poder considera que, se tais vontades são de fato pecados, esses de maneira alguma devem ser extirpados mas glorificados!, visto que é precisamente onde a religião vê como pecado que está a grande potencialidade do homem em sua gratidão de se dar, para si e para o mundo.
Vale também ressaltar que essa relação entre “verdade” e “arte" nos foi apresentado não sem uma grande herança de preconcepções que acompanharam todo o percurso histórico da filosofia ao tratarem frequentemente essas duas áreas como paralelismos, uma cisão que supostamente pretende evidenciar partes dissonantes de um mesmo objeto: essência vs. aparência, ser vs. parecer, inteligível vs. sensível. Não havia, portanto, a menor possibilidade de que a questão chegasse a modernidade senão como uma presumível relação de cunho científico, opondo permanentemente o ser e matéria ao indagar a veracidade de nossa percepção sensível, um pouco como já havia feito Sócrates (ilusão vs. verdade, mundo material vs. mundo das ideias, etc.), porém, agora como proposta racionalista. Consequentemente, como de costume, surge a contraproposta de tal visão que ganha proporção dentro da compreensão artística. E a partir daqui retornamos novamente ao pensamento de Nietzsche.
A tradição ocidental, condicionada aos moldes do pensamento socrático e do cristianismo (sendo esse uma de suas cepas, a maior delas), que conjecturou haver um paradigma indiscutível entre o corpo e a alma, bem como o sensível e o inteligível, foi a mesma que colocou a arte e a verdade em cadeiras distantes crendo que brigariam se ficassem muito familiarizadas uma com a outra. E de fato, a verdade até o presente se mostrou terrivelmente hostil a arte. Nessa suposição de aparente correspondência, Nietzsche se apropria não só dos elementos antagonizados para inseri-los em sua filosofia mas também de um mesmo parecer de seus contemporâneos... com a exceção, porém, de enxergar mais valor na arte do que na verdade. Em uma época de hipervalorização das avaliações científicas, lançava a pergunta: como haveria de ser a arte menos importante do que a verdade?
Em certos casos, muito raros, pode ser que semelhante “vontade do verdadeiro” esteja realmente em jogo, o que não deixaria de ser uma intrepidez extravagante e aventureira, o orgulho metafísico de uma sentinela perdida que prefere um punhado de “certeza” do que toda a nossa carrada de belas possibilidades. (NIETZSCHE. p. 22, § 10)
Por isso a verdade, para Nietzsche, no sentido de tê-la como fundamento universal, é inútil porque nada tem a nos oferecer em efetivo, apenas crenças, promessas, paraísos inexistentes. Não nos traz nenhum benefício, utilidade ou efeito senão aquele de nos enfraquecer emocionalmente, filosoficamente (criticamente) e socialmente, onde cria-se relações de hierarquia em que o indivíduo é motivado a permanecer em uma posição de comodismo permanente, sempre a mercê de uma autoridade que tende a levar ao autoritarismo. Enfim, nada além da degeneração do homem. Nada além do nada. Dessa maneira é possível notarmos a visão que Friedrich tinha com relação “a verdade”, ao vê-la muito mais como obstáculo do que algo de valia para o homem. Ainda mais: vê-la se manifestar como uma temática tão frequente na cultura humana que chega a afirmar se tratar de um vício da nossa alma debilitada. Como uma droga de natureza escatológica difícil de se livrar.
É certo que o desejo de uma garantia orientadora, que gere encaminhamentos de conduta e nos apontem significados precisos para cenários de caos da realidade, se apresentam de várias formas além da religião e da filosofia. Campos como as ciências, as estatísticas e a previsão, dentre outros, nascem do nosso anseio por tal garantia de significado, de previsibilidade, de manutenção da compreensão da vida. Nascem de uma mesma dor, um mesmo pranto: o do recém nascido perdido no escuro que vê na figura do pai o ser de maior segurança tal como nenhum outro pode ser. Ele sabe que basta um mínimo soluço para que o colo venha lhe acudir, nisso, usa seu choro como recurso de socorro em meio a sua total impotência. Porém, tão logo cresce percebe que seu progenitor é bem menor e menos desejável do que enxergava ser quando na altura e idade da sua inocência. Seu símbolo de segurança absoluta é, na verdade, vacilante: mortal e falho como qualquer outro, e mais ainda, assim como ele, veio nu ao mundo e ainda hoje suscetível as lágrimas tal como o próprio filho.
O choro, assim, se torna um anseio permanente fruto do desamparo que a criança experimenta e cada manifestação de crenças fundamentadas em supostas verdades é, na verdade, um soluço angustiado desse pequeno na tentativa de resgatar um "novo pai" à suprir o vazio deixado por aquele que foi morto. Toda forma de tentar trazer certezas ao homem mesmo quando não há – ou ainda, supor de antemão que pode encontrar alguma certeza para toda e cada ocasião é, em si, executado pelo anseio de verdade – A carência de segurança, atacando novamente. Ela quem trava o ser com a sua eterna e previsível angústia de prever passos e atitudes. Todas igualmente são formas de dar a luz à verdades. A arte, todavia, o liberta. Apenas isso dá a possibilidade do bebê assustado tomar seu pranto, sentir o ar gélido e indiferente com o qual o mundo lhe cumprimenta desde o seu nascimento, olhar para o perplexo na sua mais perpétua ausência de garantia e aprender a andar por conta própria, fazer de seu choro um canto aprazível e proveitoso.
Disso também vale salientar que muito do que se discute na atualidade utilizando-se das obras de Nietzsche, sobretudo as temáticas de cunho social, possuem um limite de equivalência e interpretação dada não apenas a realidade histórica, cultural e aos demais fatores circunstanciais próprios do autor mas também ao campo de perspectivas que ele mesmo se prestou a considerar e basear o ponto de partida de seus pensamentos.
A linguagem não é uma verdade, é apenas o que ela é: linguagem. Não há porque insistir em querer representar a realidade do mundo através dela. A consciência humana, e de cada sujeito, é formada por signos — aliás é o próprio universo de signos em atividade de relação e construção de sentido o que chamamos de “consciência” — e na tentativa de nos comunicarmos com eficiência com uma outra consciência, um outro sujeito, desenvolvemos essa ferramenta a que chamamos de linguagem: um código que simplifica absurdamente tudo o que tínhamos de mais complexo na experiência subjetiva com a finalidade de sermos compreendidos e por vezes também compreendermos a nós mesmos. Assim, elimina-se a diferença, o complexo, ambíguo e particular do que foi sentido internamente a fim de estabelecer um meio mínimo de comunicabilidade, externamente.
O que ocorre é que com o tempo foi-se esquecendo a origem da linguagem e passou-se a acreditar que ela se tratava de uma descrição exata, fiel e perfeita da realidade do mundo e de como as coisas são, quando na verdade é apenas uma representação, um resumo ainda parco mas o melhor que temos para podermos compartilhar algum sentido em comum de realidade. Porém esta realidade não está nas palavras, nem elas, menos ainda, são a realidade. A palavra só pode, no máximo, apontar para algo que lhe é infinitamente superior, anterior e muito mais complexo do que pode-se abrigar nas unidades de um substantivo e nas qualidades, tempos e modos de um adjetivo. A realidade, de tal modo, supera em todos os sentidos o retardamento de nossa linguagem quando ela depende de nossa percepção, por sua vez condicionada a um conjunto de fatores que nos formam, como o contexto histórico, lugar e os limites vitais da nossa vontade.
As palavras existem para os homens e não os homens para as palavras. E só existe para o homem aquilo que ele simbolizou em seu intelecto, de forma que se não há símbolo não há significado algum obtido; não há consciência de coisa na consciência. Nesse sentido a mente só pode ter visualização de algo que caiba em um termo também visualizável, à princípio uma palavra, um nome. Uma vez dado o nome, o que não existia é parido para a consciência humana, porém não significa que aquilo que não existia na consciência humana não exista por absoluto.
O homem, já viciado no costume de sua língua como descrição legítima da realidade, então pensa: “se não existe em minha consciência, não existe para além de mim”, como se o real dependesse da admissão de sua consciência e não o contrário. Ora, isso seria exatamente inverter a realidade do mundo pela concepção da cognição que pressupõe abrange-lá; outra vez, a manifestação da vontade de verdade, que anseia possuir o real em sua consciência e como não pode, o substitui pelo seu próprio valor universalista. Deve-se admitir no entanto que a percepção humana é também um ato de vontade apenas, particular, orgânica, transitória, como o próprio real de onde se origina.
Nietzsche nunca escreveu uma palavra sobre transexuais ou sobre quais eram suas considerações a respeito da ideologia de gênero, mas escreveu sobre “homens” e “mulheres”, e ponto. Porém é possível transportarmos os princípios do seu pensamento para analisarmos a questão de maneira crítica, desde que nos atentemos às limitações de sua realidade temporal e circunstancial para a particularidade de cada temática. Nesse caso a inexistência das terminologias cisgênero e transgênero bem como o reconhecimento dessa particularidade do gênero humano à época de Nietzsche (final do séc. XIX) não impossibilita de forma alguma a abordagem de tal questão dentro de sua filosofia. No fundo é exatamente disso que se consiste toda filosofia histórica: o exercício de ir atrás do que produziram as grandes mentes do passado, que viveram as questões de seu tempo, procurando obter algum auxílio para questões do hoje. E é por essa mesma razão que, em meio a tudo que há de incerto, a filosofia permanece sendo aquilo que há de mais certo no homem: a sua própria incerteza. Enquanto houver espécie humana haverá também o questionar em qualquer tempo, em qualquer lugar, de modo que a indagação humana sempre consegue se superar ao se manifestar por causas diferentes, totalmente outras, novas, tendo surgidas de contextos e cenários igualmente inéditos, nunca antes considerados. Por isso a filosofia conserva para si a qualidade admitida de sua própria insaciabilidade.
Você é essa máquina química ambulante, com uma variedade de fluídos em trânsito em seu interior, subindo e descendo, entrando e saindo, sofrendo os mais variados processos de alteração química constantemente. Um agenciamento celular colossal que se aglutina na formação de uma unidade orgânica e ao mesmo tempo se divide para a manutenção desse mesmo organismo. Como poderia tal força mutante da natureza ser em correspondência aos parâmetros da linguagem e suas definições reducionistas, a qual tudo que toca congela, recorta, emoldura em quadro inerte?
O que a consciência tende a fazer é crer no mundo tal como o concebe, como uma linguagem. Disso se intenta enclausurar a realidade em um discurso pois esse, diferentemente do real, distante, astronômico e instável, cabe na mente. Enquanto a consciência contempla o mundo e seus elementos por meio do discurso que elucubra, feito um souvenir de globo de neve sem vitalidade (trânsito), a vida segue seu rumo imparável, metamorfa, inquieta e exuberante. A representação que trazemos na mente sobre o que conhecemos não passa de um átimo datado, raso e obscurecido, sobre aquilo que julgamos ter compreendido…
A linguagem e a matemática, tal como os conceitos espaciais de cima e baixo, norte e sul, direita e esquerda, dentro e fora, não existem por si mesmos no plano real, são apenas representações arbitrárias de sentido que nós cunhamos a fim de nos orientar, nos fornecendo bases de sentido mínimo para a vida. Não são fatos, mas produções humanas que decorrem da demanda da nossa consciência por sentido e necessidade de orientação, categorização, classificação, frente a realidade caótica. A realidade, por seu turno, não possui demandas ou necessidades, ela se faz livremente em pleno e harmonioso caos. E harmonioso porque, embora caótico, não impede seu exercício efetivo, costumeiramente assim contrariando as expectativas de nossa consciência.
Uma terceira e última observação, talvez desnecessária (para muitos, espero) embora não totalmente inválida é a seguinte: a de que Nietzsche não era nenhum anticientificista ou anti-intelectual, até porque ele exerce justamente o papel de um ao tecer suas críticas, e com toda certeza jamais iria, em dias estranhos como os de hoje, participar de uma carreata desse viés, como os de campanhas populistas, ou questionar coisas mínimas das quais já temos conhecimento sólido adquirido. Seria preciso ou uma interpretação de má fé regada de segundas intenções que, desde o começo, ignora vários pontos chaves do filósofo ou uma visão muito superficial sobre seus textos e que não chega nem ao nível de uma real análise filosófica, como se pretende, para, das palavras de Nietzsche e de toda sua linha de pensamento, tirar tal consideração. Mas, como o momento parece pedir, não custa ressaltar mais uma vez.
O que se está dizendo é que a espécie humana se prestou a a ridícula tarefa de ser mais fraca sobre o pretexto de ideais transcendentais, a partir do momento em que ele se deixa ser tão dependente de definições de orientações metódicas acerca da finalidade da vida/mundo e da natureza imanente das coisas. É claro que existem verdades tópicas, particulares, que se fazem em cada circunstância e conjunção de determinado cenário da realidade e assim coexistem em pluralidade. Isso é, uma dentre várias verdades, como esta observação recém realizada que, por não ser absoluta, faz ser verdade como tal.
Mais especificamente, o que está sendo refutado no cerne da crítica de Nietzsche é a gênese de onde afinal se originou a primeira forma de todo o ímpeto ranzinza contra a vida [vulgo “Genealogia da Moral”]. As primeiras bocas que deslumbraram a vida, a beijaram e logo em seguida cuspiram seu sabor num ato de ojeriza e ingratidão, e, após isso, passaram a dedicar o resto de seus dias ao ascetismo existencial, o niilismo negativo. E que não satisfeitos com o seu próprio celibato, se encarregaram de trazer o mesmo a todos os outros que foram convidados a vida e aproveitavam o banquete despreocupadamente. A pergunta que é preciso ser feita é quem são esses caras? De onde vieram? Como e onde nasceu essa linhagem de intrusos descontentes que acabaram dominando toda a festa? Dado os estudos filológicos de Friedrich N., somos levados a Grécia Antiga; em especial, a Sócrates (470 a.C - 399 a.C).
III. O Cosmo, uma concepção helenista
Na convicção aristotélica, o mundo se apresenta como um organismo harmonizado. Todo o cosmos, o universo por inteiro, é concebido como um mecanismo perfeitamente projetado; e como tal (bem como é próprio de qualquer mecanismo), esse possui determinadas peças posicionadas e ajustadas em determinadas configurações, de determinadas propriedades e dimensões, operando em determinados ritmos, exercendo cada qual as suas determinadas funções para o perfeito funcionamento do grande mecanismo. No caso do universo, as peças estão para os seres assim como os astros estão para as divindades. Gaia, se faz Terra – fértil, generosa e feminina; Urano, o Céu, o firmamento – imponente e magnifico, cobrindo o corpo de Gaia; Poseidon é o senhor dos mares e esses o obedecem; Hades reside no submundo; Zeus predomina nos céus; Atenas, a deusa da sabedoria, guarda o senso e a justiça; Ares, o seu irmão e deus da guerra, traz a ira e a brutalidade. E assim se segue a restrita e predeterminada relação de equivalência mecanicista do universo forjada pelos antigos gregos.
Tendo os deuses (natureza) sua participação como regentes do mecanismo, resta a nós, meros mortais, sermos as peças integrantes desse mecanismo. Alguns são molas, nascidos como molas, com propriedades de mola e feitos para exercerem função de mola. Outros são pinos. Outros bastonetes. Outros, ainda, são corda. Todavia cada um de nós só pode sê-lo em conformidade com o todo universal, se estiver bem encaixado no mecanismo. Portanto, no mundo grego clássico, o meu valor é determinado em relação a minha participação no plano harmônico universal, o que Aristóteles chamou de “dynamis”. Minha existência não dependente só de mim, mas das relações que mantenho com o mundo. Logo eu não posso ser o que eu quiser, mas tão somente aquilo que vim destinado a ser. Agir de outra forma afeta o mecanismo, provoca dano ao trabalho de toda dinâmica universal e consequentemente fere a mim mesmo, peca contra minha natureza. Como pode a mola querer ser haste ou o pino agir feito engrenagem? Assim, na sociedade helenista, um servo seria sempre servo, porque servir fazia parte da constituição de sua alma – alma de servo. Um nobre seria eternamente nobre, possuindo sangue de nobreza em suas veias. Um nascido guerreiro, destinado a guerrear e defender a pólis. Um nascido aristocrata, cuidar de assuntos políticos e da diplomacia, e assim por diante.
Evidente que, para que tudo aconteça certo, da maneira já determinada a ser, eu tenho que me alinhar com o todo (o “kósmo” grego) e eu, por minha vez, só me alinho quando opero conforme a dynamis universal, desempenhando o meu papel, estando no lugar certo, fazendo a coisa certa, configurando-se aí uma relação de mútua correspondência. Porém, existe nisso uma certa dificuldade no caso do homem pois a maior parte de sua vida não recebeu a benção de ser tão objetiva a respeito de como ser quanto a natureza que ele vê. O homem, por ser tolo, é turvo e precisa a todo tempo buscar se alinhar com o cosmos. Nisso se faz necessário a constante consulta aos governantes da natureza; aos deuses, aos sábios, aos horóscopos – a astrologia! Pois a natureza, diferente dos homens, é totalmente integrada ao todo e por isso tem plena ciência de seu caminho. A rota dos astros, a vida das colmeias, o percurso dos rios, o ciclo da colheita... O homem, por outro lado, só se encontra perdido em si mesmo.
O vento já é motivado, já possui então a sua “dynamis” e, sendo assim, venta bem como deveria ventar. Da mesma maneira a maré, mareia como deveria marear, a águia, a lebre, a arraia, o jabuti e tudo mais na natureza. A natureza não possui questões sobre si. E nós, não. Mas não porque somos tolos e incompetentes em não percebermos algo que nos foi planejado de maneira anterior – Nietzsche dirá –, sim porque simplesmente não há nenhum plano ou verdade oculta esperando por nós!
Para nós o lugar certo é sempre uma descoberta, uma aventura. Porque para nós o lugar certo é objeto de investigação. E quando finalmente o desvendamos, já não é mais: mudam-se as vontades e as aspirações, e mal nenhum fazemos em nos levantar e seguir rumo a nova aspiração, a um outro lugar. Logo, não há a mais remota chance da vida humana poder se equiparar ao destino e a vida útil de uma peça como de um relógio, quando essa foi desenvolvida por uma inteligência maior que a destinou e desenhou propositalmente daquela forma para um objetivo. O ser humano, ao contrário, não tem a mesma designação; não possui nem causa nem fim, portanto não é peça de mecanismo algum.
Mas há um terrível engano em se pensar que essa concepção de mundo foi coisa passada, superada, tendo ocorrido apenas com esse inocente povo arcaico que, tanto admirado quanto espantados com a glória e os mistérios do céu noturno numa era mais modesta em tecnologia, produziu ideias e narrativas extraordinárias buscando expressar conceitos àquela época tão excitantes e tão inusitados a nossa mentalidade; e que hoje, já grandinhos, estaríamos na posição como de um adulto desiludido que olha para as saudáveis bobagens de uma pequena criança distraída no seu mundo e faz força para segurar a gargalhada. De maneira alguma! Não teria sido esse modo de ver a vida uma exclusividade da cultura helênica, pois cá estamos nós mais de dois milênios de anos depois da origem dessas fábulas, vivendo sobre os mesmíssimos princípios e moldes legados por elas! Presentes de forma a hegemonizar a toda a mentalidade contemporânea ocidental: predeterminação, antítese, dualidade, propriedade, natureza. Os deuses que habitam abaixo, os deuses que habitam acima. Os deuses destinados a controlarem respectivas ordens da natureza, correspondentemente a sua própria natureza, e a natureza destinada a ser controlada pelo seu senhor. O delicado e justo contra o forte e maldoso. O feminino e o masculino. O bem versus o mal... etc., etc., etc.
Vivemos, até os dias de hoje, como se fôssemos os mesmos antigos de tanto tempo atrás. E ainda pior do que eles: não ousamos ao menos sermos originais em nossa mentalidade. Há de se dar o devido crédito e o devido respeito aos gregos, pois eles foram corajosos, criativos, verdadeiros desbravadores do caos e da beleza que observavam, que viviam. Nós, “homens modernos”, por outro lado – em relação a contemporaneidade de Nietzsche (1884-1900), portanto, homens do século XIX – sequer tivemos a decência de confeccionarmos nossas próprias razões do porquê ser e do como viver. Sequer fizemos questão da dádiva de lutar a própria luta, existir a própria existência. Preferimos, ao invés disso, nos refugiarmos para a caverna mais escura da nossa ignorância, lendo os mesmos contos já tão mofados e mantendo fantasias já tão insustentáveis em suas pretensões, que antes, até meigas e ingênuas, agora tornaram-se insuportáveis e motivos de vergonha.
Dessa forma é evidente que a crítica de Nietzsche é dirigida, não aos gregos de pensamentos originais e sua cultura histórica, mas a todo um modo de tentativa e costume de canonização de sua cosmovisão, de suas crenças e seus vieses. O que o filósofo está a propor é um desafio pessoal de descoberta, em não se contentar com uma filosofia anterior já dada como resposta, mas sim que ela seja a ferramenta para a confecção de uma resposta. E como tal, sim! uma resposta criada, não ulterior, suprema, mística ou metafísica. Uma resposta criada pelo corpo, de uma filosofia que é a do corpo e que se faz, também, para o próprio corpo. Nada mais.
Porque só podemos ver o mundo com os olhos que são os nossos e com a força vital que é a nossa e com o corpo que é o nosso, portanto não há verdades absolutas. Há simplesmente interpretações e visões do mundo, resultantes de nossa alegria, de nossa tristeza, de nossa força; maior ou menor que seja, mas sempre particular, individual, de nossa vida. Porque ninguém transcende o olhar da própria vida pois tudo já é imanente a ela, e toda infeliz busca por uma verdade absoluta é só uma estratégia para escravizar aqueles que poderiam ter força, tesão e arte, fazendo assim de suas vidas uma verdadeira obra de arte. Obra do próprio desejo, obra das próprias pulsões, da própria vida; sem diretores ou censores, pois a arte só tem um autor e é aquele que a escarra e encarna. São os covardes que viram a cara para o mundo da vida, a rejeitam e blasfemam contra o mundo concreto das pulsões. Foram esses que inventaram a verdade para escravizar os fortes. E o que é mais triste: com enorme êxito, conseguiram até hoje.
IV. A arte como antídoto
Pois se, como dito anteriormente, a verdade é o grande vício, qual o seu antídoto? Ao que o filósofo anti-herói nos sugere conceber a vida tal como ela é. O antídoto – ora, é a arte! Nesse sentido, o antídoto é “conceber a vida como arte” ao invés de querer ter certeza e pleno saber das coisas. Enquanto muitos se indagam da finalidade da existência e com isso passam a buscar a tal verdade para tentarem satisfazerem-se filosoficamente, Nietzsche questiona: qual a finalidade da verdade? Para que a queremos? Por que realmente achamos precisar tanto dela? Ao que ele mesmo responde que não: nós é que a inventamos com a finalidade de preencher o vazio sentido pelo dessentido que só nos acomete assim, enquanto tal, por não ousarmos conceber a vida na sua devida proporção.
E qual proporção melhor para ela do que aquela feita da mesma matéria que se origina do vago, como é a arte? Ah, foi por nada, literalmente nada, por não ousarmos a contemplação da beleza caótica da vida como ela é, assim como faz o artista, que nos entregamos a tão pouco!
É a partir do vago, do nada, que o artista inicia sua obra no domínio do seu processo em que toma tudo aquilo que pode tomar do mundo, o que vê, o que ouve, o que pensa e o que sente, como se tais coisas fossem suas; e de fato assim as torna ao compô-las em seu projeto somado a sua inspiração, ressignificando cada elemento tomado em valores próprios, tão teus:
Para o poeta, o artista da linguagem prima, há um ressignificado das palavras quando são tiradas de seu uso convencional e pragmático, de uma mesma comunicação direta, para um uso criativo trabalhado em uma linguagem independe. Uma linguagem ousada e nova, fundada pelo poeta assim que ela cai em suas mãos e é grafada em seus versos, pronunciada de sua boca. O que passa a ser dito ali não são nem podem ser mais as mesmas palavras dantes pois tiveram seu valor redefinidos no artifício que domina aquele artista tal como o artista domina seu artifício; cada declamação carrega o peso de um novo cosmos que se abre e se satisfaz em si mesmo. Num estado de embriaguez inspiradora (Rauschgefühl), as palavras deliram e ele provoca a catarse de compreensões soltas naqueles que o assistem e são também afetados.
Para o músico, o poder de despertar as mais variadas sensações através de seus harpejos, de seus batuques, das fantasias que modelam e vivem agora em sua melodia, o seu oásis particular. Ele ressignifica o mundo não significado sempre que o olha e sonha o seu próprio universo trazendo-o de dentro para fora, para o mundo que até então nada era. Hoje ele é sua canção. O músico se faz por compor em sua potência para que possa assim poder admirá-la toda vez que retoma a tocá-la. A potência está lá o tempo todo quando ela é tanto o motor quanto a matéria de sua composição. Ela é maestro e forma dos acordes que ele monta, sabendo muito bem qual a sequência perfeita para desencadear os sentimentos que deseja que possuam o ouvinte. Ao tocar seu instrumento as cordas se sustêm, vibram, gritam e uma invasão a dimensão física passa a ser realizado. Seu som, sua música, sua criação ecoa pelo ambiente e o envolve nesse pedaço que disparou de si como canção. Do som mais cativante e sumamente profundo a convulsão abrupta e histérica causada pelas distorções de seu timbre. É corrente, é cortante; é sublime e sensual. É a variedade infinita de possibilidades que habita sua criatividade. É a reflexão de suas paixões, seus achados, suas perdições… sua potência, se manifestando na forma mais elevada. Nem ele nem o mundo é mais o mesmo. Ele deu música ao mundo, ele se deu como resposta à questão do vazio. Ele cria agora o seu próprio mundo toda vez que compõe e engendra novas combinações e sentimentos, por isso, ele é deus!
Ao homem da pintura e da plástica que brinca de gerar mais outra variação de tom em sua tela quando delicadamente ou selvagemente a significa com seus gestos no ar, se desenha também um mundo próprio. Do limpo e puro branco da ausência de qualquer coisa para a riqueza de cores, pigmentação, sombras e realces da paisagem que se forma, forma e forma, continuamente; para o novo quadro, seu significado em retrato, que acaba de conceber. Ou para o escultor que rouba da natureza a matéria prima para sua arte e de um mero barro, um mero pó de argila, um mero qualquer coisa e qualquer nada se faz, através de duas mãos, um novo algo que ganha dimensão e representação. E junto com o seu suor, com o seu afeto, seus toques, sua concepção e com todo aquele tempo que fora investido e que jamais, em toda sua vida, retornará a ele, o escultor materializou sua estrutura, escarrou um novo significado.
Ao homem que canta e declara assim o seu amor pela vida, da maneira que bem compreende “vida” como mostra naquele instante seu modo de concebê-la, sofrê-la, tê-la... invariavelmente, amá-la.
O antídoto é a arte.
Obras usadas no texto:
De referência e citação textual:
- NIETZSCHE, Friedrich. “Além do Bem e do Mal: Prelúdio de uma filosofia do futuro”. São Paulo: LaFonte, 2017.
- NIETZSCHE, Friedrich. “Genealogia da Moral”. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
- NIETZSCHE, Friedrich. “Vontade de Potência”. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011.
- HEIDEGGER, Martin. “A vontade de Potência Como Arte”. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
- STOEVING, Curt. “Friedrich Nietzsche” retrato. 1894. Óleo sobre tela, 180 x 242 cm. Coleção de pintura dos museus do Klassik Stiftung, Weimar.
- STOEVING, Curt. “Friedrich Nietzsche in the Pergola at his Mother’s House in Naumburg”. 1894. Óleo sobre tela, 105,6 × 77,3 × 2,3 cm. Coleção de pintura dos museus do Klassik Stiftung, Weimar.
- MUNCH, Edvard. “Friedrich Nietzsche” retrato. 1906. Óleo sobre tela, 201 x 160 cm. Coleção de pintura da Galeria Thielska.
- MUNCH, Edvard. “The Scream” (“Skrik”). 1893. Óleo sobre tela têmpera e pastel sobre cartão, 91 x 73,5 cm. Coleção de pintura da Galeria Nacional de Oslo.
- MUNCH, Edvard. “Maddona”. 1894. Óleo sobre tela, 90 x 68 cm. Coleção de pintura do Museu Munch, Oslo.
16 de maio de 2021
Vitória, ES
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2ª edição do trabalho de Introdução à Filosofia originado no primeiro período do curso de Literatura e Licenciatura em Letras Português, 2020/2, por Gabriel Rocha sob orientação do Profº Dr. Fernando Mendes Pessoa.
A primeira edição foi elaborada e enviada para apreciação ao professor dentro do prazo limite do trabalho, em 16 de maio de 2021. Após a entrega do trabalho o texto obteve sua segunda edição, resultante de uma série de revisões descompromissadas de qualquer dever acadêmico que se estenderam até o mês de agosto daquele ano.
Nesta edição o texto traz um desenvolvimento mais integral sobre o aforismo, através da ampliação do tópico a respeito da cosmologia grega, que resulta em um capítulo inteiramente dedicado a esse tema, e alguns trechos argumentativos complementares nos dois primeiros capítulos.
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