Cartas de incorporação de personagem (Teseu)

Carta I

“Faltando apenas quatro dias para o meu casório com a minha amada, não posso esconder o quanto estou animado e nem todo o amor que sinto por ela. Quero fazer uma festa que ultrapasse os padrões da própria realeza. Uma festa que corresponda ao tamanho e intensidade do amor que tenho pela minha Hipólita.

Porém, não posso negar que no meio de toda felicidade que invade meu coração repentinamente a medida que vejo a movimentação do céu sob nossas cabeças, anunciando o passar de mais um dia e a chegada de nosso casamento enquanto passeamos aos arredores desta floresta, temo só de pensar na possibilidade de que algum problema ao acaso possa acontecer e vir a comprometer a cerimônia. Em anos de tomadas de decisões e aconselhamento que garantiriam o futuro ou a extinção do Império, chega ser curioso que uma cerimônia assim consiga me deixa tão ansioso. Todavia o amor de Hipólita me justifica desde já.”

– Duque Teseu

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Gabriel Rocha
31.05.17 


Carta II

“Durante muito tempo o meu sonho foi ser alguém. Alguém de excepcional importância, um grande nobre. O mais nobre dos homens... Alguém que trouxesse mudança. Não mais um, mas me tornar a melhor tiragem de mim, aquela que eu ainda não conhecia.

Enquanto criança, imaginava que esse que ainda me era desconhecido estava guardado, me esperando no trono de um palácio, junto a graça de mandar e desmandar em quem e no que estivesse sob o meu domínio, uma vez sujeitos ao meu poder. Quando jovem, imaginava eu estar nas grandes vitórias e conquistas de território obtidos pela demonstração viril de toda a minha força e da fúria do meu exército provando sua fama de implacabilidade e impiedade nos campos de batalha, tão ágeis em seus golpes quanto uma dança mortal, acompanhado do prazer de fincar a bandeira do meu reino em mais um pedaço de terra.

Agora, é chegada a noite. Curvo minha cabeça e me dou conta do corredor do tempo que se formou com o desenrolar dos anos vividos, e num relance que minha memória ainda guarda de cada capítulo, vejo que nada disso sou eu.

Não sou minhas condecorações de honra, nem da cavalaria, nem os títulos de prestígio da Ordem. Não sou minhas riquezas, não sou minha coroa e nem mesmo minhas vestes finas ou as minhas armaduras douradas, minuciosamente trabalhadas com pedras preciosas, que eu mesmo escolhi, sob critério de natureza e medidas! – E lá se iam homens em longas jornadas de dias a semanas ou ainda meses, à procura de matérias e iguarias que eu solicitava, a serviço de minhas vontades. Também não sou a marca das fronteiras que demarcam o meu reino, ou os juros que arrecadei com a cobrança de impostos sob outras nações, as obras confiscadas, os monumentos erguidos e todos os ornamentos gloriosos dos meus muitos e muitos castelos espalhados sob os vales e cidades...

Vejo agora que o meu sonho foi, deveras, só um sonho; lúdico e passageiro. A realidade parece demandar algo muito mais simples do que toda essa febre tem a oferecer, quando ao final, resta só o cansaço.

Meu sonho hoje é um desejo, e deste os céus me fizeram realidade. Hoje, e sempre, busco ser o melhor de mim para mim mesmo. Busco dia após dia a tiragem que se parece comigo e está mais acessível a mim, e não àquela que compete a média do que os nobres pensam sobre mim ou qualquer outra que tenta com exaustão ser reverenciada quando na realidade o que está sendo reverenciado é a peça enfeitada que está acima da cabeça do rei e não o homem abaixo daquele título, daquela peça.

Hoje, e para sempre, quero ser eu mesmo. Quero me casar com a minha amada Hipólita e passar o restante da minha vida ao lado dela e, o tanto que puder, ao lado de nossa descendência, em paz, e só.  Hoje eu não procuro mais justificativas em viagens que atravessam oceanos, ou nas exaltações de muitos, no louvor de meus súditos... Ser exaltado na intimidade do meu quarto com quem amo me agrada muito mais. Tudo o que eu realmente preciso está aqui.

Hoje e para sempre,

– Duque Teseu

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Gabriel Rocha
07.06.17


Cartas de incorporação de personagem (Teseu de “Sonho de Uma Noite de Verão” por Shakespeare) escritas e interpretadas por Gabriel Rocha, grupo Teatro Agenor, em um dos ensaios do primeiro trimestre de 2017. 

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